sexta-feira, 24 de novembro de 2017

O SAX SUPREMO DE JOHN COLTRANE

HÁ 50 ANOS, O MUNDO PERDIA UM DOS MÚSICOS QUE MAIS INFLUENCIOU GERAÇÕES, INDO ALÉM DO JAZZ E DO BLUES. COM UMA VASTÍSSIMA OBRA LANÇADA EM VIDA E TAMBÉM PÓS-MORTE, JOHN COLTRANE MOSTROU AO MUNDO SUA MENSAGEM DE TRANSFORMAÇÃO E ELEVAÇÃO ESPIRITUAL ATRAVÉS DA MÚSICA.

  * Por Sergio Ferraz


No dia 23 de setembro deste ano John Coltrane estaria fazendo 91 anos, caso estivesse vivo. Lembro do impacto que senti quando o ouvi pela primeira vez, aos 15 anos, quando meu professor de música me apresentou o álbum "Sun Ship". Fiquei impressionado com aquela sonoridade agressiva que lembrava uma banda de rock, a força da bateria, o sax agressivo gritando nos agudos e saltando rapidamente de notas agudas para o grave... Era algo novo para mim e, ao mesmo tempo, de músicos de "tanto tempo atrás" na visão de um jovem que começava a dar os primeiros passos no vasto mundo da música.
Ouvi este álbum ainda inúmeras vezes e fui atrás de outros. Considerando a imensa dificuldade em achar discos de jazz na cidade do Recife dos anos 80, consegui ainda o álbum "Coltrane plays the Blues". Fui surpreendido pela elegância com que ele tocava blues e o virtuosismo de seu sax, tocando arpejos rápidos e usando notas de aproximação cromática aplicada às escalas mixólidia, dórica e a penta-blues. Isso acabou influenciando (e ainda influencia) muitos músicos de jazz. Era como se, a partir dali, eu tivesse percebido que era inevitável um solista de jazz ter como referência a forma com que Coltrane tocava.

Nascido numa família de classe média da Carolina do Norte, EUA, Coltrane cresceu numa forte atmosfera religiosa e musical (seu pai tocava violino e ukulele e sua mãe cantava no coral da igreja). Aos 13 anos, com a morte súbita do pai e uma drástica mudança de vida, o tímido Coltrane passou a se dedicar intensamente aos estudos do saxofone depois de passar rapidamente pelo clarinete. De natureza obsessiva, tornou-se um músico que sempre buscou o virtuosismo e a integração espiritual com seu instrumento e sua música. 

Sua carreira teve três momentos marcantes. O primeiro momento apre-sentava um sax arrojado, seguindo a tradição jazzística de Charles Parker, criador do bebop. Ainda neste período foi convidado a tocar com Miles Davis, que já era então bastante conhecido na época. Em 1959 participou do álbum "Kind of Blue", principal obra de Miles e que marca a fase do jazz modal. Antes disso, Coltrane já se interessava por composições mais complexas, com muitas mudanças de acordes.  Mas é a partir da participação na banda de Miles Davis que ele se torna um músico conhecido no mundo do jazz, inclusive no cenário internacional.

O segundo momento de Coltrane foi marcado pela formação do Quarteto, quando teve a sorte de ter encontrado os músicos perfeitos para que ele pudesse produzir sua obra com grandiosidade. O Quarteto era formado pelo virtuosismo de seu sax, o piano de McCoy Tyner (que trouxe elementos de sua formação erudita como acordes quartais e harmonias impressionistas vindas de Debussy e Ravel), a bateria agressiva, inovadora cheia de polirritimia de Elvin Jones, e o baixo seguro e marcante de Jimmy Garrison, que também incorporou na banda uma forma inovadora de tocar baixo, deixando de ser apenas um instrumento que toca as notas graves da harmonia, trazendo-o para frente e assumindo uma posição de solista. Ouso dizer que esta foi a formação mais intensa da história do jazz e que influencia músicos até hoje. 

O terceiro e último momento (entre 1965 e 67) foi marcado por experiências sonoras inovadoras e ousadas, que não foram compreendidas pelo grande público ou mesmo por seus companheiros de banda. Coltrane montou formações inusitadas para o jazz, com trompetes, percussão, um segundo sax e dois baixos... Explorou regiões extremamente agudas do sax e também indo do grave ao agudo rapidamente, numa forma musical livre e sem curso ou harmonia definida. Marca o início desse período o álbum Ascension (1966). Esse álbum causou grande impacto no público tanto positiva-mente como de forma nega-tiva. Confesso que, mesmo para mim, ouvir Ascension não é uma tarefa fácil.

Os anos em que Coltrane se desenvolveu como músico de vanguarda também foram marcados por importantes movimentos de inovação da música erudita na Europa. Enquanto no velho continente músicos como Karheinz Stockhausen e Pierre Boulez faziam profundas inovações na música erudita, Coltrane seguia pelo mesmo caminho na América do Norte, buscando uma forma completamente diferente de tocar e compor jazz.

Neste período, a cultura ocidental, incluindo a música, recebia fortes influências das religiões e filosofias do Oriente. Coltrane foi bastante influenciado por este movimento, assumindo uma posição de alcançar o que ele buscava como uma profunda espiritualidade através de sua música. Em 1965 John Coltrane lança "A Love Supreme", seu álbum mais marcante e que apresenta de forma clara sua relação com a espiritualidade através da música. Como se rezasse através do sax, ele jogava na música uma forte energia de transformação.

A música de Coltrane influenciou também outras referências importantes na minha formação musical, como o violinista Jean Luc Ponty (que chegou a ser chamado de "o Coltrane do violino" no seu início de carreira no final dos anos 60) e John McLaughlin, que no início dos anos 70 gravou um álbum com Carlos Santana em homenagem a Coltrane, chamado "Love Devotion Surrender”.

Lamentavelmente, Coltrane veio a falecer aos 40 anos, vítima de um câncer no fígado.  Mas foi um dos músicos que mais influenciou as gerações seguintes, indo além do jazz e do blues, deixando uma vastíssima obra lançada em vida e também após sua morte. John Coltrane era como um avatar, um espírito que veio para mostrar ao mundo sua mensagem de transformação e elevação espiritual através da música. Um Amor Supremo!

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* Sergio Ferraz é violinista, tecladista e compositor. Bacharel em música pela UFPE, possui seis discos lançados até o momento. Também se dedica a composição de músicas Eletroacústica, Concreta e peças para orquestra, além de ser colunista da Revista Keyboard Brasil.




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