quarta-feira, 23 de março de 2016

A MÚSICA VISIONÁRIA DE STOCKHAUSEN

ESTE MÊS, A REVISTA KEYBOARD BRASIL TEM A HONRA DE APRESENTAR O MAIS NOVO COLABORADOR, O GRANDE MÚSICO SERGIO FERRAZ, DISCORRENDO EM SUA PRIMEIRA COLUNA SOBRE ALGUMAS COMPOSIÇÕES PARA PIANO, TECLADOS E MÚSICA ELETRÔNICA DO VISIONÁRIO ALEMÃO STOCKHAUSEN. 
* Por Sergio Ferraz

"O artista há muito tem sido considerado como um indivíduo que refletia o espírito de sua época. Acho que sempre houve diferentes tipos de artistas: os que eram principalmente espelhos do seu tempo e, então, alguns muito
poucos que tinham 
um poder visionário, os quais os gregos 
chamavam de áugures: os que eram 
capazes de anunciar o próximo estágio 
no desenvolvimento da raça humana, 
realmente escutar o futuro, e por meio 
de sua obra preparar as pessoas para 
aquilo que estava para chegar..." (
K. Stockhausen¹)
[¹ STOCKHAUSEN, Karlheinz, MACONIE, Robin. Stockhausen sobre a música, palestras e entrevistas compiladas por Robin Maconie. São Paulo: Ed. Madras, 2009.]



Stockhausen em 1994 no Studio Für Elektronische
Musik (Estúdio para Música Eletrônica) da

WDR em Colônia, Alemanha.

Fazia pouco tempo que a Segunda Guerra Mundial havia chegado ao fim. A Europa encontrava-se destruída, literalmente aos pedaços; contudo um grupo de jovens músicos altamente talentosos, que estava levando às últimas consequências a escola serialista de Schoenberg, Alban Berg e Webern e as inovações rítmicas de Stravinsky, achava-se pronto a continuar o que de certa forma os anos do mundo em guerra interrompeu bruscamente. Dentre esses jovens estavam o francês Pierre Boulez e o visionário alemão Karlheinz Stockhausen.

Karlheinz Stockhausen nasceu em 22 de agosto de 1928 em Mödrath, perto de Colônia, numa pobre família camponesa de agricultores. Seu pai, primeiro em sua família a ser um intelectual, estudou por um curto período de tempo após a Primeira Guerra Mundial e se tornou um professor escolar; sua mãe tinha talentos para a música e era dispensada do trabalho no campo para estudar piano em casa. Stockhausen, entre seis e sete anos, surpreendia as pessoas ao escutar uma melodia apenas uma vez no rádio, depois sentar-se ao piano e tocá-la imediatamente, com todas as harmonias corretas. Entre 1947 e 1950 estudou em Colônia no Conservatório Estadual de Música (piano e educação musical) e na Universidade de Colônia (Filologia alemã, Filosofia, Musicologia). Em 1952, viajou a Paris para estudar ritmo e estética com o Mestre Olivier Messiaen; foi nessa estada em Paris que Stockhausen travou conhecimento com a Musique Concrète, fato que iria nortear sua composição e desbravar o mundo da composição eletrônica, até então um campo totalmente novo e inexplorado.

Em 1953 Stockhausen tornou-se colaborador permanente do Estúdio para Música Eletrônica da Rádio Alemã Oeste, em Colônia. Durante o período em que esteve no Estúdio da WDR realizou profundos estudos que resultaram nas suas primeiras composições eletrônicas, como Elektronische Studien I und II (Estudos eletrônicos I e II) e Gesang der Jünglinge (Cântico dos Adolescentes), nascidos da música espacial e da música aleatória. Entre 1954 e 1956, enquanto continuava a dar segmento às pesquisas e a compor no Estúdio para Música Eletrônica da WDR, estudou também, Fonética, Informação e Teoria da Comunicação com Werner Meyer-Eppler, na Universidade de Bonn.

Stockhausen foi também uma das principais figuras da Escola de Darmstadt. Suas composições e teorias foram e continuam sendo amplamente influentes, não apenas sobre compositores de música erudita, mas também no jazz e na música popular. Suas obras, compostas ao longo de um período de quase sessenta anos, evitam formas tradicionais. Além de música eletrônica, tanto com ou sem performance ao vivo, variam de miniaturas de caixas de música até obras para instrumentos solo, canções, música de câmara, coral, música de orquestra e óperas. Suas composições notáveis incluem a série de dezenove peças para piano, Klavierstücke, Kontra-Punkte para dez instrumentos, Gesang der Jünglinge, para música eletrônica e voz, Gruppen para três orquestras, Zyklus, Kontakte para percussão, a cantata Momente, para música eletrônica ao vivo Mikrophonie I, Hymnen, Stimmung para seis vocalistas, Ausdensieben Tagen, Mantra para dois pianos e equipamento eletrônico, Tierkreis, Inori para solistas e orquestra, e o gigantesco ciclo de ópera Licht.

O conceito da espacialização sonora foi amplamente estudado e difundido por Stockhausen. Ele entendia que os sons deveriam não vir apenas na mesma direção, mesmo na divisão esteriofônica, mas que deveriam envolver o ouvinte em todas as direções e  distâncias diferentes. Desde meados da década de 1950, Stockhausen vinha desenvolvendo conceitos de espacialização não só na música eletrônica, mas também em diversas obras, como o Gesangder Jünglinge em 5 canais (1955-1956) e Telemusik (1966), Kontakte (1958-60) e Hymne (1966-1967) em 4 canais. Gruppen para três orquestras (1955-57) e Carré para quatro orquestras e quatro coros (1959-60) também apresentam essa característica.

Em 1968, o governo da Alemanha convidou Stockhausen para colaborar com o pavilhão alemão na Feira Mundial de Osaka, no Japão que viria a acontecer em 1970, com a criação de um projeto multimídia conjunto com ele e Otto Piene. O resultado foi uma grande esfera onde o público entrava na mesma através de uma escada rolante até uma plataforma em seu centro. Caixas de som foram fixadas em diversas partes e alturas da estrutura e, de uma mesa de som, Stockhausen controlava os diversos canais criando uma música tridimensional para a audiência.

Karlheinz Stockhausen morreu de insuficiência cardíaca súbita aos 79 anos, em 5 de Dezembro de 2007 em sua casa em Kürten, Alemanha, deixando uma extensa, monumental e visionária obra, muito ainda a ser compreendida e estudada pelas próximas gerações. Abordaremos aqui algumas de suas composições para piano, teclados e música eletrônica.


Mantra para dois pianos 
e dispositivo eletrônico

Mantra é baseada numa melodia de treze notas (uma 
série de doze notas com a primeira nota repetida no 
final – esse é um dos dispositivos preferidos de 
Stockhausen). Esta série é então continuamente repe-
tida e expandida. Stockhausen a amplia horizontal-
mente em duração e verticalmente em altura intervalar.
Cada nota do mantra tem sua própria duração e 
dinâmica que as confere características próprias. 

Essa obra foi composta no início dos anos 1970 e marca o início de sua abordagem da Fórmula Momento, uma quase volta aos anos das suas composições de serialismo integral, porém com uma abordagem com maior sentido de liberdade e misticismo transcendental. Mantra é também música e teatro: dois pianistas encarando um ao outro como em um dramático e místico duelo. Durante a performance, os dois pianistas têm de, além de tocar a parte do piano que exige um alto rigor técnico, tocar woodblock, fazer ajustes nos controles eletrônicos, ficar em pé e cantar sílabas místicas e se esforçarem em um profundo drama musical que varia da mais intensa experiência humana à quase comédia. 
Alfons e Aloys Kontarsky realizando Mantra 
com Stockhausen (primeiro plano), Shiraz 
Arts Festival, 02 de setembro de 1972.

Stockhausen na mesa de som para a apresentação de Mantra,
no mesmo festival em 02 de setembro de 1972.


A fórmula de Stockhausen é admirável na sua simplicidade e Mantra parece ser o exemplo perfeito da sua ideia. A peça começa com um curto motivo, “o mantra”; dentro desse simples fragmento pode ser achado a semente de toda a peça, porém de forma microcósmica. Stockhausen disse sobre sua formamomento: “O grau de mudança é uma qualidade que pode ser composta tanto quanto a característica da música que está de fato mudando. Posso compor com uma série de graus de mudança, ou podemos chamar esses graus de renovação. Então, posso começar com qualquer material musical e acompanhar o padrão de mudança, e ver onde leva, de mudança zero a um máximo definido. É isso que entendo por forma momento.” (Stockhausen Sobre A música, Ed. Madras).

Mantra é baseada numa melodia de treze notas (uma série de doze notas com a primeira nota repetida no final – esse é um dos dispositivos preferidos de Stockhausen). Esta série é então continuamente repetida e expandida. Stockhausen a amplia horizontalmente em duração e verticalmente em altura intervalar. Cada nota do mantra tem sua própria duração e dinâmica que as confere características próprias. A série de treze notas com suas características são as seguintes: 1 A (repetição regular), 2 B (acento ao final), 3 G# (normal), 4 E (grupo no tempo forte em torno de uma nota central), 5 F (tremolo), 6 D (acorde), 7 G (acento no inicio) , 8 Eb (link cromático), 9 Db (staccato), 10 C (raiz de uma repetição irregular – código morse), 11 Bb (raiz para trillos), 12 Gb (sforzando), 13 A (arpejo link).

As muitas repetições do mantra aparecem em diferentes expansões e em diferentes níveis. A expansão temporal mais extrema dura por toda a peça e, assim, controla sua estrutura de grande escala. Cada uma das treze notas, com as suas características dominantes, torna-se toda a base de uma sessão musical. Dessa forma, a sessão um da peça é baseada na “repetição regular”, a sessão dois no “acento ao final” e, assim por diante. A seção com base na “repetição irregular” é especialmente marcante, sendo apoiada pela repetição irregular na gravação do código morse em transmissão de ondas curtas. Cada uma das treze sessões da obra também contém uma versão de todo o mantra (novamente com as suas treze características), e dentro de cada uma destas versões mais curtas ouvimos ainda doze repetições mais curtas e rápidas.

São, portanto, mundos dentro de mundos - do macro ao micro. Em Mantra, Stockhausen leva a cabo a sua teoria da expansão do som na qual ele afirma uma equivalência de altura, ritmo e forma como diferentes escalas de periodicidade em um tempo continuum unificado.
Outro ponto importante em Mantra é a transformação eletrônica do som dos pianos usando Ring Modulation, através do qual o som do piano é modulado com um som sintetizado, afinado no tom central de cada sessão. O grau de transformação sônica depende do intervalo entre o som sintetizado e a nota do piano: com intervalos simples (oitavas e quintas...) a transformação é súbita, porém com intervalos mais complexos (segundas menores ou sétimas maiores), a transformação é mais dramática resultando em sons como de sinos metálicos e quase vibrato.

"Sem dúvida, Mantra é uma obra prima da música para piano. Um dueto místico incrivelmente inventivo e complexo inteligentemente elaborado, um portal para novos mundos sonoros e estéticos". (Sergio Ferraz - violinista, tecladista e compositor.)

Depois de mais de uma hora de uma infinita transformação imaginativa do material original, Mantra termina com um momento de profunda reflexão e uma compostura quase clássica, como o próprio mantra entonado tranquilamente pela última vez. Sem dúvida, Mantra é uma obra prima da música para piano. Um dueto místico incrivelmente inventivo e complexo inteligentemente elaborado, um portal para novos mundos sonoros e estéticos.

KLAVIERSTÜCK X 

(Peça para Piano no 10)

São impressionantes 22 minutos de uma poderosa, vigorosa, criativa e virtuosa peça para piano solo. Klavierstück X é dominada pela utilização de clusters, que ocorrem numa variedade de tamanhos, bem como em glissandos, os quais são os aspectos mais importantes dessa obra de sabor aural único. Para a performance dos clusters recomenda-se que o executante use luvas para proteção. Stockhausen media a peça equilibrando-a entre momentos de relativa ordem e desordem. Com a ajuda de escalas dispostas em relacionamento de desordem e ordem, Stockhausen cria figuras fazendo uso de séries com diferentes graus de ordem. Ele explica que um alto nível de ordem são caracterizados por maior clareza (ausência de casualidade), baixos níveis por maior grau de casualidade equilibrando diferenças (aumentando a permutabilidade, diminuindo clareza). Maior ordem é amarrado à menor densidade e maior isolamento dos eventos. Ao longo da peça, há um processo de mediação entre desordem e ordem. De um estado inicial de grande desordem, emerge um crescente número de figuras concentradas. Por fim, as figuras tornam-se unificadas numa mais alta supra ordenada Gestalt (forma). 



Alguns analistas também sugerem que Klavierstuck X pode ser vista como uma “forma Sonata”. A “exposição” seria o início da peça seguidos por um “tema de clusters” a peça segue com “ecos” do “tema principal” dos clusters até finalizar com uma “cadência” de um acorde de sete notas. O “desenvolvimento” segue e consiste de vários ciclos de prelúdios, grupos de clusters e grupos de ecos. A “recapitulação” é finalmente alcançada por um trêmulo e a obra termina com uma “coda”, a qual lentamente expande-se verticalmente na altura intervalar.


Essa é uma analise alternativa para entender uma obra com tamanha complexidade, profundidade e beleza. Um outro aspecto de Klavierstuck X é a aura espontânea e solta que a obra respira parecendo ser uma improvisação livre. Altamente recomendo esses poderosas obras para piano do mestre alemão que apontou na sua obra, a flexa para o futuro. Um caminho que ainda há de ser explorado e compreendido por muitos.

Gravações recomendadas:
K. Stockhausen – Mantra (Pestova/Meyer Piano Duo – Naxos).
K. Stockhausen – Zyklus / Klavierstück X (Cristoph Castel, Max Neuhaus, Frederic Rzewski – Wergo Studionreihe).


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* Sergio Ferraz é violinista, tecladista e compositor. Possui seis discos lançados até o momento. Também se dedica a composição de músicas Eletroacústica, Concreta e peças para orquestra, além de ser colunista da Revista Keyboard Brasil.


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