segunda-feira, 21 de março de 2016



MARCOS VALLE
O desbravador dos mares musicais




COM MAIS DE 50 ANOS DE CARREIRA, ATRAVÉS DE SUAS CANÇÕES DE ESTILO INOVADOR, O CARIOCA MARCOS KOSTENBADER VALLE É, SEM DÚVIDA, UM DOS MAIORES COMPOSITORES DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA. OUVINTE ATENTO, SENTAVA-SE AO PIANO DA MÃE PARA EXPERIMENTÁ-LO. E, ASSIM, SURGIU SEU INTERESSE PELA MÚSICA – DESCOBERTO NA INFÂNCIA – E ESTUDOU, POR 13 ANOS, PIANO CLÁSSICO EM CONSERVATÓRIO. A VONTADE EM APRENDER VIOLÃO VEIO AINDA ADOLESCENTE, QUANDO DESCOBRIU A BOSSA NOVA, ESTILO QUE ADOTOU E O AJUDOU A GANHAR O MUNDO. AOS 72 ANOS E INCANSÁVEL, MARCOS VALLE PERCORRE OS QUATRO CANTOS DO PLANETA COMO SE FOSSE DAQUI-ALI, REALIZANDO GRANDES TURNÊS. A REVISTA KEYBOARD BRASIL DESTE MÊS TEM A HONRA DE TRAZER UMA ENTREVISTA COM UM DOS MAIORES MESTRES DA BOSSA NOVA EM ATIVIDADE NO MUNDO. 

* Por Heloísa Godoy Fagundes

Foto maior: Marcos Valle é autor de mais de 500 composições, dentre elas “Samba de Verão”, “Viola Enluarada” e “Black is Beautiful”. Fotos menores (da esquerda para a direita): (1) Marcos Valle começou a tocar piano ainda criança. (2) Antonio Carlos Jobim ao piano e Marcos Valle no violão. (3) Marcos com Eumir Deodato na gravação 
do disco 'samba 68', Nova Iorque, 1967.



Compositor, cantor, violonista e grande pianista, Marcos Valle conquistou o respeito e a admiração no Brasil e no exterior. Muitas de suas mais de trezentas músicas, já foram gravadas por artistas como Elis Regina, Tim Maia, Roberto Carlos, Bebel Gilberto, Sarah Vaughan, Chicago, Dizzy Gillespie, Stacey Kent, Diana Krall, Emma Bunton, entres muitos outros.

Nascido em Copacabana, filho e neto de advogados, de mãe e avó pianistas clássicas, vizinho de Tom Jobim e frequentador da casa de Vinícius de Moraes, Lula Freire e tantos outros 'bambas' da era dourada da música brasileira. De uma Rio de Janeiro tomada pela Bossa Nova não foi difícil para Marcos Valle preferir a música ao invés da profissão de Direito, cursada por um ano na PUC-Rio.

Foto maior:  Sylvia Telles, Antonio Carlos Jobim, Roberto Menescal e Marcos Valle em 1964 na RCA Victor Studios. Fotos menores (da esquerda para a direita): (1) Marcos Valle, Quarteto em Cy(as “Girls from Bahia”), com Marcos Valle no programa de Andy Williams, em Los Angeles, 1966. (2) Marcos Valle e Henry Mancini em 1967.(3) Seu irmão Paulo Sérgio com quem fez inúmeras músicas. 




Considerado um dos integrantes da segunda geração de um dos movimentos mais influentes da história da música popular brasileira – a Bossa Nova – Marcos Valle iniciou sua carreira artística em 1961 integrando um trio, juntamente com Edu Lobo e Dori Caymmi. Nessa época, começou a compor suas primeiras músicas em parceria com o irmão e letrista Paulo Sérgio Valle. Uma parceria que rendeu muito sucessos. De “Sonho de Maria”, em 1963, interpretada lindamente por Elis Regina tempos depois, a “Samba de Verão”, sucesso mundial com direito a mais 80 versões em inglês, em pouco mais de um ano, e através de Walter Wanderley, organista brasileiro radicado nos Estados Unidos, atingiu o segundo lugar nas paradas de sucesso norte-americanas, em uma versão instrumental chamada “Summer Samba”. Logo ganhou versão em inglês, agora com o título “So Nice”. “Samba de Verão” abriu as portas do mercado internacional para Marcos Valle e até hoje é seu cartão de visitas.

O sucesso o fez partir rumo aos Estados Unidos, onde trabalhou com Airto Moreira, Eumir Deodato e fez parte do conjunto de Sérgio Mendes, o Brasil'65.  Com a possibilidade de ser recrutado para servir o exército norte-americano na Guerra do Vietnã e a saudade da família e dos amigos, Marcos Valle desembarcou no Rio de Janeiro nos últimos dias de 1967. No ano seguinte, cantou música interiorana “Viola enluarada” (1968), em dueto com Milton Nascimento, futuro semideus do clube da esquina. 

Foto maior: Gravação da música de abertura da novela 'Véu de Noiva' para o programa Fantástico, da TV Globo, em 1969. Fotos menores (da esquerda para a direita): (1) Milton Nascimento e Marcos Valle.(2) Sérgio Mendes sentado ao lado de Marcos Valle com a banda Brazil'65. (3) Nelson Motta, Dori Caymmi e Marcos Valle.






Na década de 70 e, ao lado do irmão Paulo Sérgio, do amigo Nelson Motta e do então presidente da gravadora Philips, André Midani, montou a empresa Aquarius Produções Artísticas. Também passou a compor trilhas sonoras de filmes, temas para novela (dentre elas Pigmalião 70, Os Ossos do Barão e Selva de Pedra) e jingles (como a canção “Um novo tempo”, parceria com Paulo Sérgio e Nelson Motta, um sucesso tão grande que nunca mais saiu do ar, sendo presença obrigatória em todos os Natais da Rede Globo - até hoje). Em 1971, o rapaz loiro de olhos claros, compôs “Black is Beautiful”, hino Soul gravado pela branca de alma negra Elis Regina.

E assim, longe da inocência juvenil dos primeiros anos de sua carreira, um novo Marcos Valle passou a ser associado à modernidade, à tecnologia e a uma imagem de cidadão do mundo ao flertar, além da Bossa Nova, com o Rock'n Roll, o Pop, o Rock Progressivo, as influências psicodélicas, o Jazz, o Soul, o Funk, a Disco e muitos estilos populares brasileiros, dentre eles o Baião e o Samba. 

Em 1972, sentindo-se limitado em sua criatividade pelas imposições dos trabalhos encomendados, Marcos Valle quis dar vazão a tudo o que o influenciava naquele instante. Surfista desde a juventude, começou a frequentar o vilarejo de Búzios e alugou ali uma casa, onde permaneceu com alguns amigos por alguns dias e idealizou parte do repertório de seu novo disco. Queria então contestar preconceitos e explorar uma maior sensação de liberdade criativa. Acompanhado pelo grupo O Terço (Sérgio Hinds, Cezar de Mercês e Vinícius Cantuária), mergulhou na contracultura, na psicodelia e no Rock'n'Roll. Na faixa “Mi Hermoza”, Valle se aproxima até mesmo do Heavy Metal através de um riff pesado com ecos de Led Zeppelin e Black Sabbath.

Porém, em 1974 e com a ditadura militar tornando a vida e o trabalho no Brasil cada vez mais hostil, Valle exilou-se nos Estados Unidos, onde compôs músicas para a cantora de Jazz Sarah Vaughan, para a banda de Pop-Rock-Jazz Chicago e para o soulman Leon Ware (parceiro de Marvin Gaye). 

Em 1980 retornou para um Brasil em processo de redemocratização e disposto a ficar de vez no Rio de Janeiro, ansioso com a possibilidade da nova vida musical brasileira. E, assim, deu uma guinada mais pop surgindo sucessos como “Bicicleta” e o Funk “Estrelar” explodindo como trilha sonora para academias de ginástica. 

Na década de 90, seu estilo suingado e dançante, apoiado em grooves inovadores, adaptou-se à demanda das pistas de dança europeias e jovens DJs de música eletrônica, em especial da Inglaterra e do Japão, redescobriram sua obra antiga, notadamente a da fase Soul. No meio da febre do drum'n'bass, criaram um novo estilo, o drum'n'bossa. Dessa maneira, seus discos foram relançados e outros gravados, especialmente pela gravadora londrina Far Out Records. 

A década de 2000 foi regada a prêmios, inúmeras turnês e parcerias inéditas. Pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) e com o prêmio TIM, foi contemplado por seu trabalho “Jet-Samba”, cuja produção foi assinada pelo próprio artista. Pelo Instituto Cultural Cravo Albin foi homenageado na série “Sarau da Pedra”, projeto realizado com patrocínio da Repsol YPF e apoio da gravadora Biscoito Fino. No evento, foi afixada no Mural da Música do instituto, uma placa com seu nome e a ele dedicada pela relevância de sua obra musical. Em 2008, participou do espetáculo “Bossa Nova 50 anos”. Com repertório autoral, apresentou-se em 2012 no Brasil, ao lado da cantora norte-americana Stacey Kent. Os shows contaram ainda com a participação do marido de Stacey, o saxofonista Jim Tomlinson. Em 2013, foi premiado no “Worldwide Awards”, evento realizado no espaço Koko, em Londres. Nesse mesmo ano, comemorou seus 50 anos de carreira e lançou o CD “Ao vivo”, gravado na casa Miranda (RJ), ao lado da cantora e amiga Stacey Kent. 


No Rock in Rio 2015, Al Jarreau deu um bonito depoimento sobre a importância da MPB em sua carreira antes de chamar o amigo Marcos Valle para participar de seu show: “Vocês mudaram a minha vida. Os discos de Baden Powell, Vinícius de Moraes e Hermeto Pascoal mudaram a minha vida. A Bossa Nova mudou a minha vida. Por isso estou profundamente feliz de tocar hoje com meu amigo Marcos Valle”.

Atualmente aos 72 anos e casado com a cantora Patrícia Alví, o incansável Marcos Valle percorre os quatro cantos do planeta como se fosse daqui-ali, realizando grandes turnês e lançando e relançando sucessos. 

Norman Gimbel
O nova-iorquino Norman Gimbel, de 89 anos, é um letrista profissional. Mais que isso, um homem de negócios que vive do comércio de música popular. Caiu por acaso na obra de Tom Jobim quando este, precisando de letras em inglês para gravar suas canções nos Estados Unidos, recorreu a uma editora, que lhe indicou Gimbel. Foi o americano que transformou Insensatez em How InsensitiveÁgua de Beber em Drinking Water, e, naturalmente, Garota de Ipanema em The Girl from Ipanema. Gimbel tem a seu crédito a letra em inglês para Samba de Verão, de Marcos e Paulo Sérgio Valle, em So Nice/Summer Samba, entre tantos outros sucessos. Desde 1984 está no Songwriters Hall of Fame.
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Samba de Verão
A canção contada...


Uma espécie de temporão da Bossa Nova, “Samba de Verão”, escrita pelos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, lembra o estilo que consagrou a dupla Menescal e Bôscoli. Aliás, um ídolo de Marcos Valle, Roberto Menescal seria, não por acaso, um dos primeiros a conhecer “Samba de Verão”, quando o próprio autor mostrou-lhe a composição, ao violão, na Pedra do Arpoador, provocando o auspicioso comentário: “Vai ser um estouro.” Marcos havia concluído a música sem maior esforço, tentando transmitir o seu lado esportivo de surfista, bem como o clima de sensualidade das praias cariocas. Como acreditava Menescal, “Samba de Verão” foi um grande sucesso. Lançada ainda sem letra pelo grupo “Os Catedráticos”, de Eumir Deodato, a composição teve a sua estreia cantada no LP O compositor e o cantor, que foi o segundo de Marcos Valle, seguindo-se várias versões que a tornaram uma das mais gravadas em 1965. Dois anos depois, estourou nos Estados Unidos, em gravação instrumental do organista brasileiro Walter Wanderley. Por conta desse sucesso, Marcos seria convidado para se apresentar no show de TV de Andy Williams, que também gravou “Samba de Verão”, além de outros artistas como Johnny Mathis, Caterina Valente e Connie Francis, em versão de Norman Gimbel que, curiosamente, aparece nos discos ora como “Summer Samba”, ora como “So Nice”. Décadas depois, a música continua sendo gravada, dentre os artistas nomes como Bebel Gilberto, Stacey Kent, Eliane Elias, Diana Krall e Emma Bunton. 

FONTE: A Canção no Tempo – Vol. 2 – Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello – Editora 34).
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Entrevista

Revista Keyboard Brasil – Primeiramente, quero agradecer pela atenção dada à nossa publicação desde o início de nosso contato!
Marcos Valle:  Com grande prazer o faço.

Revista Keyboard Brasil – Você nasceu no bairro mais conhecido do Brasil: Copacabana. Como foi a sua infância? Por que seguiu o caminho da música? 
Marcos Valle: Minha avó materna era pianista clássica e, por conta disso, eu ouvia música clássica frequentemente. Na casa dela havia um piano/armário e sempre que eu ia lá procurava dedilhar coisas. Isso desde 3, 4 anos de idade. Mamãe também tocava peças clássicas. Então, eu era cercado por música. Também a música popular, pois meu pai, mãe e amigos, tocavam discos de vários artistas populares em casa. Me lembro especialmente de Dorival Caymmi. Ou seja, eu estava cercado pela música e a tinha também dentro de mim. Aí , deu no que deu.

Revista Keyboard Brasil – Sabemos que aprendeu piano aos 6 anos de idade, tocando música clássica. O que seus pais ouviam quando criança? 
Marcos Valle: Além dos clássicos, Bach, Brahms, Beethoven, os populares como Caymmi, Jackson do Pandeiro, Nora Ney, Luiz Gonzaga, Ary Barroso, etc...

Revista Keyboard Brasil – Além do piano e do violão, você toca outros instrumentos?
Marcos Valle: Toquei bateria durante uma época e também acordeom, por influência de Luiz Gonzaga e Chiquinho do Acordeom.

Revista Keyboard Brasil – Você pertence à segunda geração da Bossa Nova, ao lado de Edu Lobo, Dori Caymmi e Francis Hime. De onde vem suas influências musicais? Quais músicos faziam sua cabeça?
Marcos Valle: Ravel, Debussy, Chopin, Caymmi, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Ary Barroso, Dolores Duran, Antonio Maria, Nora Ney, Marlene, Marvin Gaye, Benny Goodman, Nat King Cole, Little Richard, James Brown, Henry Salvador, Sammy Davis Jr., Ray Charles, Stevie Wonder, Lucio Alves, Dick Farney e, mais tarde, Johnny Alf, Sergio Ricardo, Tom Jobim, Carlos Lyra, Menescal, Durval Ferreira e outros.

Revista Keyboard Brasil – Você era um jovem quando a Bossa Nova surgiu além de ter sido um esportista na juventude. O Brasil daquela época era conhecido pela música de Vinícius, Tom e companhia e pelo futebol de Pelé. Conte como foi a sua juventude.
Marcos Valle: Foi uma mistura de música e esporte. Pois, ao mesmo tempo que comecei a estudar piano, solfejo e teoria, aos 6 anos de idade, meu pai levava a mim e meu irmão, Paulo Sergio, para os esportes, sendo que ele também praticava com a gente: JiuJitsu, Natação, Futebol, Basquetebol, Voleibol, Ciclismo, Surfe, Esqui, Windsurf, Atletismo, Musculação, Ginástica Aeróbica, Tênis, de tudo e mais um pouco fizemos!  Namorei bastante, estudei no Colégio Mello e Souza (em Copacabana), no Santo Inácio (em Botafogo, para onde íamos e voltávamos de bonde), no Brasileiro de Almeida (em Ipanema). Estudei música também em Ipanema, no Conservatório Haydée Lázaro Brandt. Tendo nascido em Copacabana, morávamos em uma travessa que ficava entre a Djalma Urich e a Miguel Lemos quando eu nasci. Poucos anos depois, mudamos para a Rua Sá Ferreira. Somos 5 irmãos, 3 homens (Paulo, eu e Flávio) e 2 moças (Ângela e Patrícia). Flávio é advogado  e Ângela e Patrícia, professoras de dança e ginástica. Com uns 13 anos, fomos morar no Leblon. Participei de alguns conjuntos, tocando em festinhas, em troca do prazer de tocar, de algumas Coca-Colas e paquerar algumas meninas. E, tocando acordeom, cheguei a tocar em alguns programas diurnos na televisão. 

Revista Keyboard Brasil – Estudou Direito por imposição de seu pai? A música foi uma difícil escolha? Teve o apoio de sua família? 
Marcos Valle: Estudei Direito, não por imposição, mas para agradar a meu pai, que era advogado, assim como meu avô paterno. Cheguei a cursar o 1º ano de na PUC, mas então, com uma música já gravada pelo Trio Tamba (Sonho de Maria), decidi seguir o caminho da música, com o apoio de minha mãe e a preocupação de meu pai.

Revista Keyboard Brasil – E o início de sua carreira profissional? Como conheceu Edu Lobo e Dori Caymmi e de quem foi a ideia de criar o trio em 1961? 
Marcos Valle:  Edu Lobo havia sido da minha classe de aula, no Colégio Santo Inácio, quando tínhamos uns 11, 12 anos, acho eu. Anos mais tarde, estava eu, com uns 19 anos, em um lotação (como eram chamados aqueles ônibus menores), ainda em Ipanema e a caminho de casa, no Leblon, quando vi o Edu com um violão. Apesar dos anos passados, nos reconhecemos e motivados pelo violão que ele carregava, começamos a falar sobre música. Ele então, me disse que era filho do Fernando Lobo, conhecido compositor e que era amigo de Dori Caymmi, filho de Dorival, e que adoravam música. Então lhe disse que eu também. Marcamos um encontro, nos identificamos imediatamente, fizemos um trio onde eu tocava piano, e eles dois, violão, e nós 3 cantávamos nossas primeiras músicas. Nos apresentamos na TV, em programas do Fernando Lobo e Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta). E através do Edu e Dori, comecei a frequentar as rodas de música e Bossa Nova, já que seus pais eram famosos. 

Revista Keyboard Brasil – Suas composições passaram a fazer sucesso entre os grandes músicos da Bossa Nova como Tom, Baden, Lyra, Vinícius, Menescal, entre outros. Fale-nos sobre esses encontros.
Marcos Valle:  Minha primeira roda de música foi na casa de Ary Barroso, no Leme, onde então conheci, além do anfitrião, Menescal, Bôscoli, Tom, Vinicius, Lucio Rangel e outros. Mas sendo eu muito tímido, nem ousei tocar nada. Mas o segundo encontro foi na casa de Vinicius de Moraes, no Parque Guinle. Estavam ali as Garotas da Bahia, que iriam se transformar no Quarteto em Cy, e várias outras pessoas. Apesar de minha timidez, no final da noite, toquei para Luis Fernando Freire (Lula Freire), as 5 músicas que eu já tinha composto, entre elas, 'Sonho de Maria'. Lula, que é letrista, parceiro de Durval Ferreira e Menescal, adorou e combinou comigo um encontro no apartamento dele, na Rua Joaquim Nabuco, daí a uma semana, acho eu, onde haveria outra roda de Bossa Nova. E pediu que eu chegasse mais cedo, pois ele também ia combinar com o Trio Tamba de chegar mais cedo para ouvir minhas músicas. Assim foi feito. Eu toquei as 5 e quando eles ouviram 'Sonho de Maria', disseram que apesar de já estar com o repertório fechado para o próximo disco, queriam gravar a minha, de qualquer maneira. E realmente gravaram. O disco saiu com 13 faixas, ao invés de 12. Para mim foi um sonho! Eu, que era um grande fã deles! Depois, nessa mesma reunião, pude tocar as músicas para todos os que estavam ali: Tom, Menescal, Carlos Lyra, Luis Bonfá, Durval, Lennie Dale, Donato, etc… Menescal adorou as músicas e me levou à casa do Severino Filho, no Leblon, maestro de Os Cariocas. Resultado: eles adoraram minhas composições e gravaram 2 'Amor de Nada' (parceria com Paulo Sérgio)  e 'Vamos Amar' (parceria com Edu Lobo). Mais um sonho para mim realizado.

Revista Keyboard Brasil – Conte-nos como surgiu o convite da Odeon para gravar seu primeiro disco.
Marcos Valle: Através de uma namorada eu conheci a cantora e compositora Tita (há muito tempo casada com o baixista Edson Lobo que, mais tarde, tocaria comigo). A Tita era amiga da Leni Andrade e Johnny Alf e assim, os conheci. E eles gostaram muito de minhas composições e passaram a frequentar a casa no Leblon (Rua Codajás, 52), onde todos os irmãos morávamos com nossos pais. Maravilhosas tardes e noites de músicas e, para mim, aulas de bom gosto. Quem também passou a ir lá em casa foi o Sérgio Ricardo. Ou seja, aquele piano de ¼ de cauda (que hoje tenho em meu apartamento), guarda em seus teclados, as almas desses grandes músicos, além de vários outros que lá tocaram (aquela casa passou a ser um centro de música de todos os estilos): Milton Nascimento, Herbie Hancock, Tom Jobim, Henry Mancini, Donato, Quincy Jones e muitos outros… Aí, o Menescal e a Tita combinaram de me levar ao estúdio da ODEON para eu mostrar minhas composições para os artistas que lá gravavam, e também para os diretores musicais (Milton Miranda e Ribamar). Entrei na sala do Milton Miranda, onde estava também o Wilson Simonal. E me disseram: “Toque sua músicas“. Eu, com 20 anos, tímido, toquei uma por uma (eram 5). Quando acabei  eles se comunicaram baixinho e o Milton Miranda me disse: “Ninguém aqui vai gravar música sua“. Aí eu pensei: – Acabou, não agradei! Mas aí ele continuou: “Porque quem vai gravar é você. Só faremos um pequeno teste de microfone no estúdio e dependendo dele, você será contratado“ . Sem acreditar, fui para o estúdio, fiz o teste e fui contratado como intérprete por 5 anos!

Revista Keyboard Brasil – A parceria entre você e seu irmão, Paulo Sérgio Valle, rendeu bons frutos. Samba de Verão  foi levada aos Estados Unidos por Walter Wanderley com grande êxito mas, em versão instrumental. Aqui eu tenho três perguntas: Como Summer Samba se tornou So Nice? Foi uma imposição a escolha do nova-iorquino Norman Gimbel para a versão em inglês? E, o que essa música representa para você?
Marcos Valle: ‘Samba de Verão’ estourou no Brasil em versão instrumental de Os Catedráticos (Eumir Deodato). Só depois vieram as muitas gravações também com letra. Também nos Estados Unidos, o estouro foi instrumental, com Walter Wanderley Trio. Traduziram o título para o inglês, então se tornou 'Summer Samba'. Quando o Norman Gimbel (que havia feito a letra de 'Garota de Ipanema'), fez a letra em inglês, ele fugiu do tema em português, se concentrando na ideia de ‘So Nice’, por isso o título de ‘Samba de Verão’, com letra em inglês, passou a ter esse nome. Essa música representa para mim, meu cartão de visitas no mercado americano, europeu e japonês. Sendo a 2ª música brasileira mais gravada no mundo (depois de ‘Garota de Ipanema’). Ela abriu as portas de tudo que aconteceu e acontece para mim, no exterior . 

Revista Keyboard Brasil – Li que certa vez tentou acertar Marlon Brando após o ator paquerar sua então esposa Ana Maria numa festa em Hollywood quando fazia parte do grupo de Sérgio Mendes. Pode nos contar essa passagem?
Marcos Valle: Acho que era 1964. A ODEON havia lançado meu primeiro disco 'SAMBA DEMAIS'. O Sérgio Mendes queria me levar para os Estados Unidos, junto com a Wanda Sá para fazer parte do Sergio Mendes 65. Eu não quis. Então, ele levou a Wanda e o Jorge Ben. Mas no ano seguinte, ele me chamou outra vez. Eu falei que só iria se levasse minha namorada, Ana Maria. Ele disse para eu levar. Só que eu queria que ela participasse do grupo também, senão o dinheiro não dava. Ele concordou. Então, lá fomos nós. No meio do show, ele me apresentava como um dos novos grandes compositores brasileiros e, no violão, cantava algumas de minhas músicas, acompanhado pelo Sérgio, no piano, Tião neto, no baixo e João Palma, na bateria. E, depois disso, junto com o percussionista Suarez e Ana Maria, cantávamos alguns sucessos brasileiros. Bem, durante esse tempo, houve uma festa em Los Angeles, cidade onde morávamos todos, lá na casa de um ricaço, que era o rei dos enlatados (salsichas, presuntos e por aí vai…). Os convidados eram VIPs: Henry Mancini, Quincy Jones, Johnny Mandel, Laurindo de Almeida, Petula Clark, Sergio Mendes, eu e vários outros…) Microfones caíam do teto, para pegar o som. Mas haviam também os convidados atores: Tony Curtis, Christine Kaufmann, Vincent Price, novatos de Holywwod, etc… . E, um dos convidados era o Marlon Brando, que não largava a tumbadora, sendo para acompanhar quem quer que fosse. Eu passei a noite conversando com o Gabrielle Tinti, bonito ator italiano, que foi casado com Norma Benguell. Minha mulher-namorada Ana Maria, que tinha uns 19 anos (eu tinha 21), era muita bonita, morena, do tipo que Marlon apreciava. Ele a notou e, na hora que íamos embora, enquanto nos despedíamos de nossos anfitriões, o Marlon Brando (que estava muito gordo) puxou o braço da Ana Maria e pediu que ela ficasse. Ela se revoltou, berrou com ele, e me disse o que ele havia feito. Eu então parti para cima dele, mas a turma do 'deixa disso' me segurou, explicando que ele estava bêbado. O mais impressionante é que ele não parou de tocar aquela tumbadora em nenhum momento! E como tocava mal (risos)... Essa é a estória.

RKB – Ao longo de sua surpreendente carreira de seis décadas, você vai além da Bossa Nova, infiltrando Pop, Samba, Rock Progressivo, influências psicodélicas, Jazz, Soul e Funk em seus trabalhos e em suas parcerias. Esse dom de transitar por diferentes estilos musicais o torna surpreendente. Como funciona o seu processo de composição? No que você se inspira? Como as ideias aparecem?
MV: Como disse, minhas influências musicais foram variadas, e isso acabou formando meu estilo. Às vezes, a melodia me puxa. Outras vezes, o ritmo ou as harmonias. Pode ser no piano ou no violão. Ou, longe deles. Gosto muito de caminhar à beira do mar, e ali as ideias chegam, muitas vezes. A natureza é uma grande aliada nas minhas composições. Mas também gosto de trabalhar sob a pressão de um projeto com um prazo definido pela frente. Às vezes, nessas horas, recorro a ideias que mantenho gravadas. E então, desenvolvo.

RKB – Li que você é apontado como um dos precursores do beatbox que, em um português bem claro significa “caixa de batida”, som realizado com a boca. Pode-se ver esse recurso utilizado na faixa Mentira (Previsão do Tempo, 1973). Fale sobre isso.
MV: Essa coisa do ritmo é muito forte em mim. Utilizei e utilizo muito isso em meu canto. Fiz isso em 'O Cafona', 'Ossos Do Barão', 'Nem Paletó Nem Gravata', 'Garra', em 'Diferenças' (uma das músicas da trilha que fiz para Vila Sésamo)  e mais explicitamente em 'Mentira'. Desde garoto gostava de fazer isso.

RKB – A censura da década de 1970 era muito forte aqui no Brasil. Este foi um dos motivos para sua permanência nos EUA. De certa forma, esse auto-exílio o fez conhecer muitos nomes da música internacional. Fale sobre isso.
MV: Sim. Durante bastante tempo, burlar a censura era um estímulo. Conseguir ter músicas aprovadas como ‘Viola Enluarada’, ‘Black is Beautiful’, e tantas outras, era uma vitória. Mas depois, enfraqueci. Perdi a vontade de ir para o palco. A voz travou. Nessa hora, parti para o auto-exílio. Sem tempo de voltar, sem planos. Mas aí, as coisas foram surgindo. Em Nova York, Eumir Deodato gravou minha música ‘Adams Hotel’, em seu disco The First Cuckoo. A música foi muito tocada. Mudando para Los Angeles, surgiu Sarah Vaughan, o grupo Chicago, Leon Ware (parceiro de Marvin Gaye), Airto Moreira, etc...

RKB – Como surgiu a amizade com Sarah Vaughan? Foi na gravação de sua participação no disco Songs of The Beatles? 
MV:  Quando cheguei em Los Angeles, mais ou menos em 75, recebi um telefonema de Marty Paich, que estava produzindo e arranjando (junto ao seu filho David Paich, do grupo TOTO), um novo disco do Sarah Vaughan, só com músicas dos Beatles. Ele havia pego meu telefone com Sergio Mendes e queria saber se eu não gostaria de gravar cantando com a Sarah, uma das músicas dos Beatles (’Something’, do George Harrisson), numa levada Bossa. Fui à casa dele. escutei a ideia, fui para casa e fiz uma letra em português. Fiz um demo, mandei para o Marty, David e Sarah, eles gostaram demais. Então, marcamos o estúdio e gravei com ela. Também foi uma das mais tocadas do disco. Sarah então me disse que queria gravar músicas minhas. Fui à casa dela, levei o ’Preciso Aprender a Ser Só’ (If You Went Away)  e ‘Seu Encan-to’ (The Face I Love), e ela gravou as duas, uma abrindo o Lado A do Vinil, e a outra, o Lado B. E ela fez do ‘Preciso Aprender a ser Só’ o carro chefe, a música de trabalho do disco. Aí, então, dei a ela a ideia de gravar um disco só com músicas brasileiras, que ela comprou. Levei à casa dela o produtor brasileiro Aloysio de Oli-veira e ela acabou gravando 2 ou 3 discos com composições brasileiras.

RKB – Você foi contratado para escrever músicas para a TV brasileira, para o cinema e jingles. Pode enumerar as músicas desses trabalhos que mais te deram prazer em fazer? 
MV: As trilhas de TV eram sempre estrangeiras. Mas aí, o Nelson Motta deu a ideia ao Boni de começar a fazer trilhas brasileiras e me indicou, pela versatilidade que eu apresentava em meu estilo. Foi feito o convite. A novela era sobre corrida de automóveis. Chamar-se-ia ‘VÉU DE NOIVA’, com Cláudio Marzo e Betty Faria nos papéis principais. Eles queriam um tema instrumental, dinâmico  e foi isso que fiz, com meu parceiro Novelli. Um solo meu de piano, cheio de energia, a que dei o título de ‘Azimuth’. Virou sucesso. Anos mais tarde, Roberto Farias e Hector Babenco me chamaram para fazer a trilha de ‘O fabuloso Fittipaldi’, e me pediram para usar essa música na abertura do filme. Assim foi feito. 

RKB – Este ano tivemos um Grammy através da pianista brasileira Eliane Elias, músicas consagradas como ‘Águas de Março’, ‘Você’ e ‘Esse seu olhar’. Um feito para a atual situação cultural em que se encontra nosso país. Existem sim, excelentes músicos com Marcelo Jenecy, Tulipa Ruys, Céu, Mallu Magalhães, Tiê, Seu Jorge, Marcelo Camelo entre outros. Porém, a grande mídia continua a glorificar outros tipos de música, carregadas de vulgaridade, erotização e violência. Qual a sua posição sobre isso visto que você realizou há pouco tempo, um show em Santos, com outros 2 grandes músicos da atualidade Max de Castro e Moreno Veloso? 
MV: Tem lugar para tudo. Como você acabou de citar, por exemplo, músicos fantásticos, que surgiram, surgem e vão continuar a surgir, apesar da grande mídia. Com a Internet hoje em dia, você forma seu público. Esse show em Santos  que você cita, onde eu e Moreno fomos convidados do Max, é uma prova disso. Teatro lotado, lindo, que público. E nós ali no palco, felizes em estarmos juntos trocando ideias e influências musicais, com o aval da plateia, nos dá a certeza de nunca esmorecer em fazer o que acreditamos, pois sempre haverá um público querendo conferir isso.

RKB – Você é cultuado na Europa, nos Estados Unidos, no Japão, na Austrália, no Brasil, enfim. Em que parte do mundo pode-se dizer que você vive melhor da sua música?
MV: No conjunto. Uma coisa depende da outra. De repente é na Europa, de repente é no Japão ou Austrália. Ou então, por aqui, no Brasil. Então, é tudo uma coisa só para mim. Se você me perguntar do que eu mais gostei, certamente foi o 'Glastonbury Festival', O 'Sonoridades no Parque Lage', o 'Rock in Rio' ou o show em Santos com Max e Moreno, eu irei te dizer, todos, igualmente, por serem diferentes um dos outros. 

RKB – Quais são seus próximos shows? Tem projetos futuros?
MV: Tenho show no Rio com o grupo Azymuth em breve; tenho show em Montenegro, Portugal e Estados Unidos; tenho um DVD/CD que gravei com a Stacey Kent, só com músicas minhas e que será lançado pela Sony no início de abril e traz uma parceria inédita: Marcos Valle e Vinicius de Moraes. Quero avisar que é uma letra inédita de Vinicius, entregue à Carlos Lyra por um jornalista que descobriu essa letra (com uma indicação de uma possível melodia de Lyra). Carlos viu a letra, não se lembrou de alguma melodia feita e resolveu formar essa parceria que nunca havia acontecido: eu e Vinicius. Me entregou a letra, fiz a melodia, o Carlos adorou  e eu gravei com a Stacey para o DVD/CD. Chama-se ‘‘Amando Demais’’. Também tenho um novo CD em andamento. Projetos futuros? Sempre. Não posso parar!

RKB – Gostaria de deixar uma mensagem aos leitores de nossa Revista Keyboard Brasil?
MV: Um grande beijo a vocês todos, e agradeço a energias que me trazem, com seu interesse pela música que faço!


Marcos Valle e Patrícia Alví no Festival Glastonbury em 2015, no Reino Unido.

Saiba Mais sobre Marcos Valle:
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* Heloísa Godoy Fagundes é pesquisadora, ghost Writer, há 10 anos no mercado musical de revistas. Já trabalhou na extinta Revista Weril e agora é publisher e uma das idealizadoras da Revista Keyboard Brasil - publicação digital pioneira no Brasil e gratuita voltada à música e aos instrumentos de teclas.









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