Beethoven: o primeiro compositor moderno
MODERNO E A FRENTE DE SEU TEMPO, TESTANDO A TOLERÂNCIA DOS OUVINTES E DOS INTÉRPRETES COM EFEITOS INÉDITOS E, MUITAS VEZES, CHOCANTES. ESSE ERA O COMPOSITOR BEETHOVEN. UMA FACETA QUE MUITOS NÃO IMAGINAM E RELATADA ESPECIAL E MINUCIOSAMENTE PELO MAESTRO OSVALDO COLARUSSO PARA A REVISTA KEYBOARD BRASIL DESTE MÊS.
* Por Maestro Osvaldo Colarusso
Ludwig van Beethoven (1770-1827) é muito provavelmente o primeiro compositor, cronologicamente falando, que incorpora o sentido de ser moderno. Suas ousadias e provocações faziam, pela primeira vez na história da música, com que se testasse a tolerância dos ouvintes e dos intérpretes com efeitos inéditos e, muitas vezes, chocantes.
Este tipo de ousadia é algo muito mais detectável no século XX ao constatarmos, por exemplo, que dois dos maiores compositores do último século, Stravinsky (1882-1971) e Schoenberg (1874-1951), ficaram famosos por provocarem escândalos quando das primeiras audições de suas obras. Se não houveram vaias para Beethoven (isso não era usual em sua época), a incompreensão foi enorme. Sabe-se, por exemplo, que um dos mestres de Beethoven, Joseph Haydn, (1732-1809) não aguentou ficar até o final da primeira audição da Sinfonia Eroica, em Viena, nos meados de 1804. Fico mesmo a imaginar Haydn ouvindo as inusitadas harmonias e ritmos da Terceira Sinfonia do mestre de Bonn.
É útil lembrar que no meio do Primeiro Movimento Beethoven utiliza um dos mais dissonantes acordes na harmonia tonal, o de sétima maior, e o repete em fortíssimo cinco vezes. Há, neste mesmo Primeiro Movimento, a utilização de uma harmonia “errada” frente a uma melodia tocada pela trompa. Aliás, um aluno de Beethoven, Ferdinand Ries (1784-1838), achou que o trompista estava errado corrigindo-o, e foi severamente punido por Beethoven por não ter compreendido a sua ideia. Apesar de a Eroica nos fornecer inúmeros exemplos de originalidade não é apenas nesta obra que constatamos este tipo de ousadia do compositor. Os exemplos são inúmeros: no início do último movimento da Sinfonia Pastoral há uma utilização de harmonias de quintas (e não de terças, como é o usual) e numa das Variações sobre uma valsa de Diabelli opus 120, a variação XX, Beethoven abandona aquilo que chama-mos de função tonal. Sequências impossíveis de serem analisadas. Aliás, nesta mesma obra, na variação XXXI, há uma visão futurista. A linguagem pianística se antecipa à maneira de se escrever para piano de Chopin (1810-1849) e Schumann (1810-1856). A utilização de um coro em uma sinfonia faz parte deste largo repertório de ações.
Muitas obras de Beethoven só foram plenamente compreendidas muito tempo depois de sua morte. Seus últimos quartetos e sonatas só viriam a encontrar espaço definitivo no repertório em meados do século XX. Beethoven foi realmente moderno e à frente de seu tempo.
Acima: Maestro Leonard Bernstein regendo a Sinfonia n.º 5 em Dó menor Op. 67, dita Sinfonia do Destino, de Ludwig van Beethoven. Escrita entre 1804 e 1808, é uma das composições mais populares e mais conhecidas em todo repertório da Música Clássica, além de ser uma das sinfonias mais executadas nos tempos atuais. Trata-se da primeira sinfonia do autor composta em tonalidade menor, o que só voltaria a acontecer em 1824 com a Sinfonia n.º 9, em Ré menor op. 125. A Sinfonia n.º5 em Dó menor é considerada como um "monumento" da criação artística.
Abaixo: assista Eroica - The Movie
A consciência da permanência...
Pelo estudo atento de sua biografia, constatamos que Beethoven foi o primeiro compositor da história a ter uma certeza bem forte de que sua obra seria perene. Nem Bach (1685-1750), nem Vivaldi (1671-1748), por exemplo, tinham a menor ideia de um dia tornarem-se imortais e que seriam tocados cem ou duzentos anos depois de sua morte. Beethoven, ao contrário, tinha certeza de sua permanência. Daí seu cuidado meticuloso de numerar suas composições com números de Opus, o primeiro na história da música a fazer isso. Beethoven, ao ter consciência de sua genialidade (ele sabia sim que era um gênio, expressou isso mais de uma vez), resolveu utilizar todos os tipos de expressão musical acessíveis em sua época: a música sinfônica (notavelmente suas sinfonias e aberturas), a música de câmara (notavelmente seus quartetos de cordas), a música para piano solo (notavelmente as sonatas), oratórios (notavelmente a Missa Solemnis) e mesmo a ópera (Fidelio, sua única ópera, uma obra prima inquestionável).
O mais influente dos compositores...
Prova maior da importância e da modernidade do compositor é o fato de que é difícil achar um compositor posterior a Beethoven que não tenha sido fortemente influenciado por ele. Encontramos marcas bem evidentes de Beethoven na produção de compositores de origens e de épocas bem diferentes. Encontramos a presença dele na produção de Brahms e de Wagner, dois compositores antagônicos. E vemos quase que citações de suas obras nas composições do francês Hector Berlioz. Mesmo compositores brasileiros como Alberto Nepomuceno (especialmente em sua Sinfonia) demonstram uma indisfarçável paixão pela maneira de se expressar do compositor alemão. No século XX, Beethoven continua presente, seja na obra de Stravinsky (Sinfonia em dó), de Bela Bartók (Primeiro Quarteto de Cordas) e de Schoenberg (Sinfonia de Câmara opus 9).
Além desta importância, em termos composicionais, Beethoven mudou muita coisa em termos da prática musical. Graças às ousadias das obras do compositor, surgiu a necessidade do aparecimento da figura de um maestro de orquestra com uma técnica clara e eficiente. Fico imaginando a dificuldade das primeiras audições da Quinta Sinfonia, com seu início em contratempo, e imagino mesmo situações cômicas naqueles primeiros compassos sem um maestro com técnica eficiente. O mesmo se dá nas mudanças de andamento no último movimento da Nona Sinfonia. Foi a modernidade destas obras que deu oportunidade para o surgimento dos primeiros grandes maestros como o francês François Habeneck (1781-1849). A expansão da orquestra e o desenvolvimento dos instrumentos de sopro foram fundamentalmente provocados pelas modernidades beethovenianas, e o mesmo se pode dizer quanto à técnica pianística.
As contradições de um modernista...
Beethoven era um fervoroso admirador dos ideais da Revolução Francesa. Mas se de um lado desprezava a nobreza, recebia um forte apoio dela. Príncipes, Condes, Duques e até mesmo imperadores eram adulados por ele no afã de conseguir apoios financeiros. Sem nunca ter sido um “mestre de capela” Beethoven recebia polpudas somas dos mesmos nobres que ele ideologicamente desprezava. Também neste aspecto foi um compositor moderno e atual. Mesmo em suas contradições, a modernidade dele ainda nos fascina.
“O gênio é composto por 2% de talento e de 98% de per-severante aplicação!”
- Ludwig van Beethoven
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* Osvaldo Colarusso é maestro premiado pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). Esteve à frente de grandes orquestras, além de ter atuado como solista. Atualmente, desdobra-se regendo como maestro convidado nas principais orquestras do país e nos principais Festivais de Música, além de desenvolver atividades como professor, produtor, apresentador, blogueiro e colaborador da Revista Keyboard Brasil.
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