O Pulso Cósmico da Música Eletrônica
CONSIDERADAS A ÚLTIMA FRONTEIRA NA AVENTURA SÔNICA DA HUMANIDADE, A MÚSICA ELETRÔNICA E A ELETROACÚSTICA SÃO TEMAS ABORDADOS ESTE MÊS. NOVAS EXPERIÊNCIAS, NOVOS MÉTODOS, NOVA MÚSICA!
* Por Sergio Ferraz
"Novos recursos mudam o método; novos métodos mudam a experiência, e novas experiências mudam o homem. Quando ouvimos sons somos mudados: não somos mais os mesmos após ouvir certos sons, e isso é mais o caso quando ouvimos sons organizados, sons organizados por outro ser humano: MÚSICA!"- K. Stockhausen
Inimitável e controverso Stockhausen expandiu os limites da música eletrônica em suas composições inovadoras.
Na matéria da Revista Keyboard Brasil do mês passado falei um pouco sobre algumas composições para piano do Mestre alemão Karlheinz Stockhausen. Falei também sobre aquela geração de compositores dos anos de 1950 a qual figuram, além do Stockhausen, Pierre Boulez, Luigi Nono, Gyorgy Ligueti, Luciano Berio e tantos outros compositores que tomaram para si a responsabilidade de cruzar a última fronteira da música ocidental após a Segunda Guerra Mundial.
Hoje focarei outro grande feito dessa geração: a música eletrônica e eletroacústica. Mas antes, não é possível falar em música eletrônica sem falar em Pierre Schaffer (1910-1995), o criador da Musique Concretè, que possibilitou ao compositor a utilização de uma grande variedade de sons de qualquer natureza (sons concretos). A Música Concreta abriu um novo horizonte na composição musical. Agora, o compositor não estava mais restrito aos instrumentos da orquestra sinfônica, ele podia também fazer uso de outros materiais sonoros, sons do cotidiano, ruídos de motor, carros no trânsito, vento, chuva, etc. Os sons concretos, incluem-se aí os ruídos, foram elevados à categoria de material sonoro musical.
No âmbito da música erudita, a música eletrônica e eletroacústica representam a última fronteira na aventura sônica da humanidade. Enquanto na França Pierre Schaffer pesquisava e desenvolvia a musique concretè, na Alemanha o compositor Herbert Eimert¹ (1897-1972) dava os primeiros passos no desenvolvimento do que se chamou de música eletrônica. Trabalhando no estúdio da Rádio de Colônia, Herbert Eimert e seu grupo, do qual participava Stockhausen, criavam música a partir de sons senoidais gerados por osciladores.
A música eletrônica libertou o compositor das limitações da partitura escrita para instrumentistas, pois agora não mais existia a dificuldade na execução, ou no limite humano de executar um instrumento. O próprio compositor elaborava os sons e empregava uma ordenação de sons senoidais pré-determinados, assim a estrutura do som tornava-se também a própria estrutura da música.
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¹Herbert Eimert (1897-1972): o compositor trabalhou como crítico musical no diário Kölnischen Zeitung, de 1936-1945, após isso, trabalhou como editor de música na rádio NWDR (Nordwestdeutscher Rundfunk, agora Westdeutscher Rundfunk), em Colônia. Como diretor de programas de música de fim de noite da NWDR desde 1948, ele lançou sua própria série broadcast, Die Klangwelt der elektronische Musik(O mundo do som da música eletrônica). O primeiro show, foi ao ar 18 de outubro de 1951, e teve palestras de Eimert, Beyer e Friedrich Trautwein em seu Trautonium, além de exemplos de som recém-gravado em gravadores AEG Magnetophon no estúdio especialmente equipado e concedido pela rádio para a realização da Elektronische Musik , e que viria a ser a famosa Köln Estúdio de Música Eletrônica.
As primeiras peças eletrônicas de Stockhausen
Karlheinz Stockhausen sentado e Eimert trabalhando em estúdio (1953).
Stockhausen enquanto trabalhava junto ao grupo de Eimert no estúdio da Rádio de Colônia, fixou a ideia de compor música eletrônica apenas com sons senoidais. Sons senoidais não existem na natureza e só podem ser reproduzidos eletronicamente por osciladores. O som senoidal é puro, contendo apenas a fundamental sem parcial harmônica.
Com esses sons, Stockhausen compôs Elektronische Studie 1 e Elektronische Studie 2. Além dos sons puros senoidais, Stockhausen aplica aqui a técnica do serialismo integral nas duas primeiras composições eletrônicas que ele preferiu chamar de “Estudos Eletrônicos”, pelo fato do compositor estar ainda em busca do seu ideal. São obras bastante abstratas. Elektronische Studie 1 composta em 1953 tem nove minutos e meio de duração. Além do caráter abstrato e atonal é mais contemplativa, misteriosa e estática. Stockhausen usou uma série de seis sons senoidais para compor Elektronische Studie 1, esses sons combinados criam sons complexos semelhantes a sinos.
Em Elektronische Studie 2, composta em 1954, segue a mesma linha de trabalho da primeira obra, porém, ao contrário de Studie 1, é mais dinâmica, rítmica e gestual. Stockhausen, inicialmente, pensou em batizar Studie 2 de Bewengungen (Movimentos). Elektronische Studie 2 é também mais breve, dura aproximadamente três minutos, algo bastante incomum em composição erudita. O espectro sonoro da obra vai de uma região intermediária entre o espectro harmônico do Studie 1 até ruídos trabalhados com filtros. Em Studie 2, Stockhausen utiliza uma série de cinco sons para produzir uma escala sem oitavas com intervalos uniformes um pouco maior que um semitom.
Elektronische Studie 2 foi a primeira obra de música eletrônica a ter sua partitura pública. A partitura é digna de nota. Os blocos na parte superior mostram as frequências usadas em cada nota. Os números indicam durações em centímetros da fita magnética (a velocidade sendo 76.2 centímetros por segundo). Na parte inferior, a partitura mostra a envoltória e amplitude dos sons relativos ao bloco na parte superior.
Mas a ideia de compor música eletrônica apenas com sons senoidais estavam com os dias contados. Em 1952, o compositor italiano Bruno Maderna (1920-1973), compôs a primeira música eletrônica mista, que passou a ser chamada de eletroacústica. A música eletroacústica é resultado da mistura de sons eletrônicos com sons naturais (sons concretos). A peça de Bruno Maderna batizada de Musica su Due Dimensioni, foi composta para fita magnética, flauta e pratos.
Seguindo a linha da música eletroacústica, Stockhausen compôs, entre 1955-1956, Gesang der Jünglinge; essa peça tornou-se um marco e virou referência na época em termos de composição eletroacústica. A obra mistura sons da voz de um menino cantando textos do livro de Daniel, a sons eletrônicos. Gesang é também a primeira obra musical que trata da espacialização sonora. Foi originalmente composta para cinco canais de áudio, posteriormente reduzido a quatro canais. O tratamento da espacialização sonora tornou-se um ponto importante na obra de Stockhausen daí por diante.
Elektronische Studie 1
Stockhausen
Elektronische Studie 2
Stockhausen
Cosmic Pulses
Falando agora um pouco sobre espacialização sonora, vamos dar um salto no tempo, ao ano de 2007. Stockhausen trabalhou incessantemente até seu último ano de vida. Em 2007, publicou a obra eletrônica conceitual, Cosmic Pulses.
Cosmic Pulses está incluída dentro de uma obra ainda maior, Klang (sons). Cada parte de Klang está relacionada a uma hora do dia, sendo Cosmic Pulses a décima terceira hora. O compositor elaborou um plano engenhoso para a estruturação dessa obra. São vinte quatro loops, cada qual em um pitch diferente que vai de um a vinte e quatro rotações em vinte e quatro tempos e em vinte e quatro registros dentro de uma escala de cerca de sete oitavas.
Os loops são sucessivamente sobrepostos um ao outro do mais grave ao mais agudo, e do tempo mais lento ao mais rápido, finalizando um após o outro na mesma ordem. Os loops foram trabalhados manualmente para criar diferentes regulagens de accelerandi e ritardandi dentro dos seus respectivos pitches. Foram também adicionados glissandos para cima e para baixo dentro da melodia original.
Stockhausen elaborou, de maneira completamente inovadora, a espacialização sonora de Cosmic Pulses. Cada sessão de cada uma das 24 camadas de som tem seu próprio movimento espacial distribuído entre 8 autofalantes. Para tanto, Stockhausen elaborou 241 trajetórias percorrida pelos sons entre os 8 autofalantes!
A obra dura trinta e dois minutos em que o ouvinte é literalmente bombardeado por sons eletrônicos vindos de diversas direções, passeando, girando, movendo-se entre os 8 autofalantes dispostos em forma octagonal.
A primeira audição pública de Cosmic Pulses, aconteceu em Roma em 7 de maio de 2007, no Auditorium Parco della Musica.
Aqui no Brasil, a aventura sônica no mundo da música eletroacústica é algo que ainda carece ser melhor difundida e esclarecida ao público interessado, seja ouvinte ou músicos. Flo Menezes compositor, professor da Unesp e autor de vários livros sobre música eletroacústica, Eloy Fritsch e Silvio Ferraz são alguns dos grandes nomes que vem trabalhando e contribuindo enormemente no desenvolvimento da música eletroacústica brasileira. Mas isso já é assunto para um próximo capítulo...
Os músicos Karlheinz Stockhausen (à direita) e Flo Menezes.
"A personalidade de Stockhausen era difícil. Ensimesmado em má-xima potência e ato, seu ego descomunal despertava mais sentimentos avessos que solidá-rios à sua empreitada como gran-de inovador da linguagem musical. Mas sempre foi preciso, para cada um de nós que desfrutávamos e desfrutaremos de sua música, ser maior que a mesquinhez para en-tender que atrás de sua posturaintransigente e auto-centrada delineava-se uma das figuras mais íntegras que as artes conheceram."
- Flo Menezes sobre Stockhausen - Compositor e ensaísta,
autor de “Música Maximalista: Ensaios Sobre a Música
Radical e Especulativa” (ed. Unesp) e “Apoteose de
Schoenberg” (Ateliê Editorial), entre outros.
Espero que esse pequeno texto contribua na compreensão desse mundo sonoro de possibilidades infinitas.
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* Sergio Ferraz é violinista, tecladista e compositor. Possui seis discos lançados até o momento. Também se dedica a composição de músicas Eletroacústica, Concreta e peças para orquestra, além de ser colunista da Revista Keyboard Brasil.
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