ELZA SOARES - CANTAR É REMÉDIO BOM!
COM 60 ANOS DE CARREIRA MUSICAL E PRESTES A COMPLETAR 79 ANOS DE IDADE, ELZA SOARES COMEMORA O SUCESSO DE 'A MULHER DO FIM DO MUNDO', SEU MAIS RECENTE TRABALHO - LANÇADO EM OUTUBRO DE 2015 E RESPONSÁVEL POR UM DOS MOMENTOS DE MAIOR RECONHECIMENTO DE SUA CARREIRA, CONFIRMANDO SEU JEITO CAMALEÃO DE SE ADAPTAR ÀS NOVAS GERAÇÕES. A REVISTA KEYBOARD BRASIL TEM A HONRA DE TRAZER ESTE MÊS, UMA MATÉRIA E ENTREVISTA EXCLUSIVAS COM AQUELA QUE É CAPAZ DE CANTAR EM QUALQUER TOM E QUE TRAZ A AUDÁCIA E A CORAGEM COMO SOBRENOMES PARA O SOARES, DE ELZA DA CONCEIÇÃO.
* Por Marina Ribeiro
& Heloísa Godoy Fagundes
... Mas, de que planeta você veio?
“– Do mesmo planeta que o seu: do planeta fome!”
Comandando seu programa Calouros em Desfile, Ary
Barroso (de óculos) não imaginava que aquela menina
franzina seria, anos mais tarde, agraciada com o título
de cantora do milênio pela BBC de Londres.
Este é o diálogo que inaugura a carreira de Elza Soares. O famoso apresentador do programa Calouros em Desfile, Ary Barroso, não poderia avaliar que esta sua ironia, a tentativa de desencorajar a pequena figura vestida com roupas muito maiores que ela, presas por alfinetes e trazendo os cabelos amarrados por duas 'chiquinhas', seria a previsão de que aquela não era mesmo uma menina deste planeta.
Louis Armstrong foi quem se reconheceu
nela e a chamou-a de filha.
Mulher, negra e pobre. Franzina. O prognóstico não era dos melhores. Casou-se pela primeira vez aos 12 anos, obrigada pelo pai. Alguns anos mais tarde, foi-se o marido, vítima de tuberculose. Viúva com 15 anos. Perdeu filhos ainda menina. O primogênito, muito doente, foi o motivo que a levou ao programa de Ary Barroso – escondida da família, que não aceitaria tamanha ousadia – em busca de dinheiro para remédios. Ganhou o prêmio. Inútil. O bebê não resistiu.
Entretanto, naquela noite, Ary Barroso reconheceria: “– senhoras e senhores, acaba de nascer uma estrela.”
Cinco filhos para criar. Trabalha de lavadeira, como a mãe. Operária, como o pai. Cantora de casas noturnas. Cantava onde se permitia que uma negra cantasse. O Brasil não permitia acesso a todos os lugares. E ela segue como crooner da bailarina Mercedes Baptista, em turnê pela Argentina.
Quando volta, encontra a situação complicada: com a morte do pai, as coisas ficam difíceis e Elza tem um sonho com seu genitor... “– Você será muito rica com a sua voz”. Mas a realidade era dura e sua mãe esbraveja: “– Pare de sonhar! Compra um jornal e vai procurar emprego em casa de família, que é bem melhor”.
“- Do planeta audácia!”
Elza Soares e Mané Garrincha: um
amor caro e dolorido.
Ela não comprou jornal. Ligou o rádio. A Rádio Mauá procurava artistas e, assim, conseguiu um emprego: dividiria com Mão de Vaca um programa aos sábados, sem remuneração. Já no primeiro programa, um ouvinte liga para a rádio e pede que Elza o aguarde. Ele quer conversar. Era Moreira da Silva, que a convidou para cantar na boate Texas Bar. A visibilidade daquela boate promoveu contatos com Sylvinha Telles, uma grande incentivadora de sua carreira e, Lupicínio Rodrigues, cujas músicas consolidaram a presença de Elza Soares nos palcos e no cenário musical do país. A partir daí, vieram os discos pela Gravadora Odeon.
Sambista que canta rock. Roqueira que mistura samba, jazz e soul. Eclética! Livre! Ousada! É mesmo difícil de entender. Uma outsider, na definição de Chico Buarque de Hollanda. É mesmo duro de engolir tamanha audácia e coragem. É mais difícil de aceitar quando este comportamento vem de uma mulher, negra e pobre. Seria difícil nos dias hoje. Era muito mais nos anos 50. Ela era e é, mestre na arte de confundir.
1962 foi ano de Copa do Mundo. Airton e Lolita Rodrigues contrataram vários artistas através do programa Clube dos Artistas para se apresentarem nas concentrações da Seleção Brasileira. Elza Soares estava entre eles e foi designada como a madrinha da seleção. Assim, ela viaja para o Chile. Para cantar no início dos jogos.
Mas... de que planeta ela veio?
“- Do planeta coragem!”
Audácia e coragem como sobrenomes
para o Soares, de Elza da Conceição.
A coragem com que enfrentou a lata d'água que o destino lhe punha na cabeça é que lhe ensinou as vocalizações que, no Chile de 62, seriam o ponto de identificação com Louis Armstrong, de quem nunca havia ouvido falar, e que estava também na comitiva de artistas. Ele, afinal, foi quem se reconheceu nela e a chamou-a de “filha”.
Fosse só Louis que ela conheceu no Chile! Houve mais. Aconteceu ali o início de um grande caso de amor, que duraria 17 anos e lhe daria mais um filho. Em retrospecto, é fácil entender a atração dos dois: grandes talentos. Ela, a voz e a força. Ele, as pernas tortas e toda a carência deste mundo. Um apaixonado por passarinhos! Era ele próprio, um bichinho assustado.
Este amor foi caro. Dolorido. Mané Garrincha bebia. Vítima da ignorância: desde pequeno lhe ofereciam, por brinquedo, doses da branquinha... Nunca mais se livraria do vício. Ela não entendia. Ele se conformava, retraía. Ela se indignava, crescia. Ele encontrou em Elza, uma grande defensora. Alguém que se ocupou e cuidou dele. Defendeu seus interesses. A união foi extremamente mal vista.
O Brasil, mais uma vez, não entendeu. E jogou pedras, literalmente. Elza brigou, como lhe é peculiar. Esbravejou, buscou soluções. De nada adiantou. O máximo que conseguiu foi uma invasão em sua casa, naqueles anos, na década de 60 em que nem o Brasil nem os brasileiros podiam entender muita coisa. Por isso, a mudança para a Itália.
Nesta época, Elza já era conhecida mundialmente como cantora e Garrincha era aclamado como jogador. O casal fazia sucesso na Europa. Elza fazia shows. Substituiu Ella Fitzgerald em uma turnê. Tudo ia bem. E, então, voltam ao Brasil. Um casamento conturbado e cheio de problemas. Separam-se, afinal. Garrincha falece por cirrose hepática, aos 49 anos. Deixa 14 filhos, apenas um de Elza Soares.
Mas... de que planeta ela veio?
“- Do planeta dor!”
Elza Soares: considerada a melhor cantora do
milênio pela BBC e descrita como uma mistura explosiva
de Tina Turner e Celia Cruz pela Time Out.
O filho que ela teve com o jogador sofre um acidente de carro e não sobrevive. Já era demais. Nem cantar Elza conseguia. E ela desiste. Muda-se para os Estados Unidos, mora em várias cidades até estabelecer-se em Nova Iorque onde, devagar, vai ressurgindo... Seu apelido? Fênix. Cabe bem! Amante dos saltos, obstinada, talentosa. Incansável! Eleita a cantora do milênio pela BBC de Londres.
Nem mesmo a queda no palco foi capaz de tirá-la de lá. Ela canta sentada, mas canta. Canta maravilhosamente pois a música faz parte dela, nasceu com ela, cresceu com ela. A mesma atitude que Elza teve, tão menina, quando enfrentou Ary Barroso e o auditório inteiro rindo de sua condição. Esta mesma atitude Elza manteve a vida inteira.
Ninguém entendia como uma mulher pudesse enfrentar seu destino com tamanha coragem. Ninguém compreendia como ela poderia viver transbordando alegria, se a vida lhe dava tanta porrada. “É que eu gosto de revidar”, respondeu certa vez. E, seguia, revidando. Pois ela é Elza, obstinada! Livre! Ousada!
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Para escrever este texto foram utilizadas entrevistas realizadas com Elza Soares (Programa Ensaio, Programa Roda Viva, Revista Quem) e o documentário BIS – O gingado da nega. Dentre todas as características de Elza Soares, a mais marcante é a humildade. A forma como ela se coloca sempre em segundo plano, como se preocupa sempre com o outro. Em tempos de carestia, a preocupação é constante: preciso alimentar meus filhos. Quando ela diz “O Brasil me deve”, refere-se à injustiça do Brasil em relação ao reconhecimento de Garrincha. Em nenhum momento foi “ela”, sempre os outros. Ingênua, simples, humilde. Não são estas as características que definem a grandiosidade de alguém? Adorei você ainda mais, Conceição. Além da Elza, a Conceição. (Marina Ribeiro).
A Mulher do Fim do Mundo
Gravadora: Circus/Natura Musical
Lançado em outubro de 2015 e o 34º de sua carreira, seu álbum mais recente atende pelo nome de A Mulher do Fim do Mundo e é responsável por um dos momentos de maior reconhecimento de sua carreira. Por que? Simples, além de ser considerado pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) como o Melhor Álbum do ano passado e trazer onze faixas que transitam por gêneros diversos, como samba, rock, rap e eletrônico, o projeto traz letras críticas, mais do que atuais sobre a vida urbana de São Paulo, a partir de temas como transsexualidade, violência contra a mulher, drogas, sexo e morte. Gravado no Red Bull Studio São Paulo.
“Um presente, uma dádiva.” É assim que Elza Soares descreveu o encontro com o grupo de músicos, compositores e instrumentistas, expoentes da nova geração paulistana responsáveis pela criação do novo álbum. Das 50 músicas, apenas 11 foram selecionadas. Isso significa que mais adiante haverá continuidade do projeto.
Por trás do projeto estão os Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Marcelo Cabral, Romulo Fróes e Celso Sim, que, com o produtor Guilherme Kastrup, são responsáveis pela criação e estética do novo álbum.
Na Europa, a previsão de lançamento de “A Mulher do Fim do Mundo” é para o segundo semestre.
Entrevista...
"A música é o remédio da alma. Sem a música eu não estaria viva!" - Elza Soares
Revista Keyboard Brasil: Quando Elza Soares, que nunca estudou música, imaginou que seria uma grande cantora?
Elza Soares: Eu nunca imaginei que chegaria onde cheguei. Acho que essa é a minha missão na Terra. Meu pai tocava violão, fazia saraus e eu gostava de acompanhar. Os amigos diziam: - Olha, essa menina leva jeito! E eu fui gostando daquilo.
Revista Keyboard Brasil: Sérgio Cabral (jornalista, escritor, compositor e pesquisador brasileiro), que biografou cantores e compositores, disse certa vez que "você tem um potencial de voz tão privilegiado que pode cantar em qualquer tom. Acompanha qualquer modulação e é capaz de, em certos momentos, nem perceber que mudou de tom, pois faz isso naturalmente". Aprimorou com alguém esse jogo que você faz com sua voz?
Elza Soares: Nunca. Isso foi Deus quem me deu.
Revista Keyboard Brasil: Durante um tempo você foi injustiçada no Brasil. Afastou-se da carreira quase abandonando o que você sabe fazer de melhor. Lá fora, mais precisamente em Londres, você é aclamada como a rainha do samba. Arrepende-se por não ter saído do Brasil para tentar carreira fora do país quando Luis Armstrong a incentivou?
Elza Soares: Sim e não. Sim porque talvez lá fora eu fosse mais valorizada, aclamada de uma maneira melhor. E não porque meu país é o Brasil Eu amo isso aqui. Sou brasileira até o pé. Acredito que eu não conseguiria ficar longe do meu país para sempre.
Revista Keyboard Brasil: Você foi eleita em 2000, a “Maior Voz do Universo” pela Rádio BBC de Londres. O que pode nos dizer sobre isso?
Elza Soares: Não esperava. Me assustei bastante, porque eu sou uma artista que a rádio não toca. Também não apareço na TV. Faço shows pelo Brasil e pelo mundo e só. Então, eu não esperava mesmo. Talvez porque estive lá, não sei.
Revista Keyboard Brasil: Elza, você já fez parcerias com grandes pianistas como Dom Salvador, José Miguel Wisnik, Moacir Santos, João Donato, Antonio Adolfo e Tom Jobim. Caçulinha uma vez disse que o sonho dos pianistas brasileiros era poder acompanhar você. Duas perguntas: primeira, pode nos dizer sobre suas parcerias com os grandes pianistas? E, segunda, você se lembra de todos os que passaram por sua vida musical?
Elza Soares: Bom, minhas parcerias foram acontecendo, nunca planejo nada. Minha vida foi e sempre é assim. Igual aquela música: deixa a vida me levar... Trabalhar com Dom Salvador foi maravilhoso! Todos eles foram maravilhosos! São grandes pianistas e por isso, inesquecíveis.
Revista Keyboard Brasil: Arrependeu-se de algum trabalho, algum disco que você não teve prazer em fazer? Fez por obrigação?
Elza Soares: De alguns sim. Eu não participava da escolha do repertório. Mas tinha que fazer. Era paga para fazer, então eu fazia. Mas me arrependo sim.
Revista Keyboard Brasil: “My name is now, Elza Soares”, é um documentário de Elizabete Martins Campos, sobre sua vida e que é um enorme sucesso. Participou das ideias sobre a concepção do documentário ou apenas como a grande protagonista? Pode nos contar sobre isso?
Elza Soares: Elizabete fez um trabalho muito bom. Participei das duas maneiras, mas não tinha muita ideia do que seria. Vivi muita coisa, eu não saberia organizar.
Revista Keyboard Brasil: “A mulher do fim do mundo” é seu primeiro disco composto só de músicas inéditas. Como surgiu essa ideia? Como foi a escolha do repertório?
Elza Soares: São músicos maravilhosos de São Paulo, cada um melhor que o outro! A ideia foi do Celso. Fizemos 50 músicas e escolhemos apenas 11! Então podemos até pensar numa continuidade para esse trabalho tão lindo e que me deu muita alegria em fazer!
Revista Keyboard Brasil: Durante a gravação de “A mulher do fim do mundo” você perdeu seu quinto filho, Gilson Soares, de 59 anos, por complicações derivadas de uma infecção urinária. Você passou por momentos muito difíceis ao longo de sua vida e nunca parou de cantar. Sente-se forte com a música?
Elza Soares: A música é minha fortaleza. Me agarro com todas as minhas forças. Por isso que eu estou aqui, firme e forte. A música é o remédio da alma. Sem a música eu não estaria viva!
Revista Keyboard Brasil: Para encerramos, pode nos dizer sobre o convite para o projeto onde interpretou músicas de Amy Winehouse (para quem não sabe, o pai da cantora, morta em 2011, veio ao Brasil no final do ano passado para a turnê de seu álbum, Rush Of Love e fez questão que Elza Soares tivesse uma participação especial nos shows)?
Elza Soares: A Amy era sensacional. Uma voz maravilhosa. O convite veio do pai dela e eu aceitei numa boa.
Revista Keyboard Brasil: Muito obrigada por nos conceder um tempo em sua agenda para a realização dessa entrevista! Sucesso sempre!!!
Elza Soares: Muito obrigada!
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* Marina Ribeiro é profissional de marketing, atua em comunicação digital e e-commerce e é colunista da Revista Keyboard Brasil. Mantém uma loja virtual de roupas infantis e escreve por prazer. Geminiana, seu maior desafio é manter o foco.
* Heloísa Godoy Fagundes é pesquisadora, ghost Writer e esportista. Amante da boa música, está há 10 anos no mercado musical de revistas. Já trabalhou na extinta Revista Weril e atualmente é publisher e uma das idealizadoras da Revista Keyboard Brasil.
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